quarta-feira, 3 de março de 2010

Hoje? Hoje eu não escrevo!

“Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginalia, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles...”.

ANDRADE, Carlos Drummond

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Por tantas vezes perdi o brilho do sol no meu rosto e tudo mais que ele iluminava porque estava escrevendo sobre a vida de quem não conhecia e ousei em saber um pouco mais e contar sua história! Perdi festas e conversas em roda de amigos porque estava de olho na maquininha escrevendo – muitas das vezes – com indiferença, objetividade, imparcialidade e de forma impessoal e, de certo modo alheia também às dores do indivíduo. Assim é o meu trabalho!

Também perdi coisas que não voltam mais. Gracinhas dos meus filhos, passeios no shopping, parques e praças com as crianças porque estava escrevendo sobre quem não conhecia. Já tentei me desculpar diversas vezes pelas reuniões de pais que não pude comparecer, pelas vezes que não busquei na escola, pelas que não pude esperar no portão... mas simplesmente passou! E me sentia importante com isso!

Também perdi tempo que poderia ter dedicado a mim. Mas assim é a vida. Não da para ter tudo ao mesmo tempo... mas hoje o conflito é outro!

Algumas experiências, sentimentos não nos importamos de compartilhar, mas outros nos são tão íntimos que compartilhamos apenas com a folha de papel. Hoje sinto medo! Queria escrever com a caneta nova e meus papéis e não posso. Só queria me debruçar em cima do papel e simplesmente deixar as idéias fluírem. Os pensamentos são mais rápidos que a mão pode escrever – olha que um dia fui canhota.

A caneta e o papel que tanto alívio me traz e que também sustentam a mim e os meus filhos, hoje me agoniam. Queria apenas escrever, me aliviar, mas não posso fazê-lo de forma eficaz. Não sou mais um “deus” que escreve indiferente aos acontecimentos. Para a dor do corpo, injeção, antiinflamatório de oito em oito horas por sete dias e exames que nada revelam. Mas e a alma inquietante?!

Para sossegar a alma e acalmar os ânimos, garranchos de uma ex-canhota em uma folha de papel e catação de milho no computador. O que tanto me impediu de viver se transformou em prazer. Hoje, privado!


Mas tem o outro lado. Não estou debruçada na máquina o dia todo. Vejo a luz do dia e a chuva fina que cai, levo as crianças até a porta de casa para irem à escola e os recebo no final da tarde, bato papo com meus pais e vejo a vida! De jornalista a mera expectadora, sem poder escrever sobre o cotidiano. Hoje? Hoje eu não escrevo!