Certa vez tomei um
tombo e ralei o joelho. Então sentei e chorei abraçada ao meu joelho que estava
sangrando. Um dos meus tios – eu morava com minha mãe na casa da minha avó
materna e, na época, tinha três tios solteiros – um dos meus tios me repreendeu
e disse: “Para de chorar! Menino não chora!”. E eu respondi: ”Mas tio, eu sou
menina!”.
Aos poucos a menina
delicada, que gostava de brincar de boneca, dançar, ouvir música, carinhosa...
foi ficando bruta e cresceu achando que o certo era ser assim. Talvez me tornar
bruta tenha sido uma forma que encontrei de me defender e não ser magoada,
manter longe as pessoas. Uma forma de me defender até de mim mesma. Eu não
sabia o que era ser feminina, mulher. Engraçado, mas um dos meus primos me
chamava de Audrey Boy. Engraçado que até ele, em sua ingenuidade de menino, me
achava “meio menino”.
Até que depois de um bom tempo – três anos depois da minha separação – e pela primeira vez na vida eu me apaixonei e amei de verdade. Nossa, que sensação mais gostosa! Eu nunca havia sentido tanto prazer em estar na companhia de alguém. Meu coração batia diferente. E eu conheci o homem que me fez me sentir mulher pela primeira vez. Como lidar com isso? Como lidar com uma situação que era pra mim um sonho inatingível e estava ali, diante de mim? Como ser mulher? Como deixar de ser uma pedra bruta se isso era tudo que eu sabia ser? Que desafio!
O amor era a contramão de mim em vários sentidos. A delicadeza no trato, nas pequenas coisas, o cuidado... isso era coisa nunca experimentada. Eu era como um animal selvagem ou uma onça braba, como eu era chamada. Mas ele tinha a capacidade de deixar a onça igual a uma gatinha. Mas ainda assim um animal selvagem que queria ser “domesticada”, mas não sabia como. Quando se é criado na selva, é difícil, muito difícil saber agir em outras circunstâncias...
E a gatinha “mansa” ou pedra quase lapidada não soube muito bem agir em várias circunstâncias... e o amansador de onça braba ou lapidador de pedra bruta se foi sem uma única palavra. Apenas foi e não voltou. Sem a mais remota dúvida, foi a dor mais dilacerante que já senti na minha vida até o dia de hoje. Levei tanto tempo para me sentir mulher para ser desta forma? Eita que não foi fácil administrar tanta dor e num período delicado – inclusive de saúde física.
Deixei de existir para o meu domador e deixei de existir até pra mim. O lado selvagem da onça a manteve “viva” a um custo alto, porque ela já não era mais tão selvagem. Não sabia mais existir na selva e não sabia existir domada. Muito da onça morreu. Tanto que ela deixou de saber quem era. A onça foi muito machucada, com feridas profundas, mas ela sobreviveu. E sobreviveu no amplo sentido da palavra.