domingo, 28 de fevereiro de 2021

Reencontrar a doçura, a delicadeza, o carinho... ser mulher

Na maior parte da minha vida tive dificuldades em ser menina, moça e mulher. Permiti que meu entorno ferisse a menina assustada e a transformasse num “menino levado”, que cresceu e não soube ser mulher. Para deixar a coisa ainda mais complicada, além de mãe, tive que me tornar pai dos meus filhos. E o lado masculino mais uma vez sobrepôs o feminino. Desiquilíbrio. Mas dentro de mim havia uma mulher que queria ser pura e simplesmente mulher, florir, permitir...

Foi criada sem referência paterna, por adultos e cercada de primOs. Para brincar tive que aprender a jogar pião, bola de gude, soltar pipa... e eu era boa. Meus cabelos encaracolados davam trabalho e era difícil de pentear – sou do tempo do creme rinse. Para dar menos trabalho, meu cabelo era curto. A carinha era de menino e, por ser muito levada, a maioria achava que eu era menino. Até meu nome confundia as pessoas.

Certa vez tomei um tombo e ralei o joelho. Então sentei e chorei abraçada ao meu joelho que estava sangrando. Um dos meus tios – eu morava com minha mãe na casa da minha avó materna e, na época, tinha três tios solteiros – um dos meus tios me repreendeu e disse: “Para de chorar! Menino não chora!”. E eu respondi: ”Mas tio, eu sou menina!”.

Aos poucos a menina delicada, que gostava de brincar de boneca, dançar, ouvir música, carinhosa... foi ficando bruta e cresceu achando que o certo era ser assim. Talvez me tornar bruta tenha sido uma forma que encontrei de me defender e não ser magoada, manter longe as pessoas. Uma forma de me defender até de mim mesma. Eu não sabia o que era ser feminina, mulher. Engraçado, mas um dos meus primos me chamava de Audrey Boy. Engraçado que até ele, em sua ingenuidade de menino, me achava “meio menino”.


E assim foi se formando o que durante muitos anos em minha vida eu “fui”. Eu vivi alguns anos com o pai dos meus dois filhos. Eu gostava bastante dele, mas não era amor. Não aprendi com ele a ser mulher. Como costumo dizer, eu era mais homem que ele. Depois dele me tornei ainda mais bruta. Não sei bem explicar. Ele me fez mal e só não foi pior porque através dele eu tive meus filhos. E, como me separei com o mais novo ainda muito pequeno – menos de três meses – tive que esquecer a mulher e ser apenas mãe, filha dos meus pais, trabalhadora e provedora.

Até que depois de um bom tempo – três anos depois da minha separação – e pela primeira vez na vida eu me apaixonei e amei de verdade. Nossa, que sensação mais gostosa! Eu nunca havia sentido tanto prazer em estar na companhia de alguém. Meu coração batia diferente. E eu conheci o homem que me fez me sentir mulher pela primeira vez. Como lidar com isso? Como lidar com uma situação que era pra mim um sonho inatingível e estava ali, diante de mim? Como ser mulher? Como deixar de ser uma pedra bruta se isso era tudo que eu sabia ser? Que desafio!

O amor era a contramão de mim em vários sentidos. A delicadeza no trato, nas pequenas coisas, o cuidado... isso era coisa nunca experimentada. Eu era como um animal selvagem ou uma onça braba, como eu era chamada. Mas ele tinha a capacidade de deixar a onça igual a uma gatinha. Mas ainda assim um animal selvagem que queria ser “domesticada”, mas não sabia como. Quando se é criado na selva, é difícil, muito difícil saber agir em outras circunstâncias...

E a gatinha “mansa” ou pedra quase lapidada não soube muito bem agir em várias circunstâncias... e o amansador de onça braba ou lapidador de pedra bruta se foi sem uma única palavra. Apenas foi e não voltou. Sem a mais remota dúvida, foi a dor mais dilacerante que já senti na minha vida até o dia de hoje. Levei tanto tempo para me sentir mulher para ser desta forma? Eita que não foi fácil administrar tanta dor e num período delicado – inclusive de saúde física.

Deixei de existir para o meu domador e deixei de existir até pra mim. O lado selvagem da onça a manteve “viva” a um custo alto, porque ela já não era mais tão selvagem. Não sabia mais existir na selva e não sabia existir domada. Muito da onça morreu. Tanto que ela deixou de saber quem era. A onça foi muito machucada, com feridas profundas, mas ela sobreviveu. E sobreviveu no amplo sentido da palavra.


Apesar das feridas profundas, que machucaram a alma, a onça descobriu o quanto é bonito não ser bicho quando, na verdade, se é mulher. Reencontrar a doçura, a delicadeza, o carinho... ser mulher foi a melhor coisa que já me aconteceu. Uma pedra lapidada não volta mais a ser pedra bruta. Uma onça domada não volta mais a ser selvagem. Uma mulher quando se descobre mulher, não volta a ser “homem”.

Eu (re)aprendi a ser mulher. Aprendi que ser forte, corajosa, manter uma casa sozinha, trabalhar fora, cuidar dos filhos, da casa, dos pais, dos amigos... não precisa deixar ninguém bruto. Eu posso cuidar e me permitir ser cuidada, posso amar e me permitir ser amada... e não tem nada de errado com isso. Ao domador, desejo do fundo da minha alma, o mesmo que eu desejo pra mim: que ele mereça a benção de ser tão ou mais amado que um dia ele foi.